Héctor Zamora
As circunstâncias
A nude torso, tense muscles, exposed genitals, a grave visage and focused gaze have been recurring characteristics of the iconic representation of the male human figure in Western classical culture. David, a sculpture by Michelangelo in the Renaissance period, is a perfect example. But its relevance is not only formal. The biblical hero is also the symbol of a civilizational project based on rationalism and virility, one which has guided – and oppressed – us until today.
In Platônicos, Héctor Zamora invites us to reflect on this model, by commissioning a professional stonemason to transform a stone sculpture of a male figure into a set of Platonic solids. The proposal to decompose the human figure into elementary polyhedrons is a poetic gesture of a “return to the origins.” The idea, however, is destined to fail. Once sculpted, the stone becomes molecularly unstable, complicating any further attempts to resculpt it with the precision needed for the Platonic forms. Thus, with the misshapen chunks of stone that are left over from the stonemason’s work, Zamora challenges us to consider the gap between theory and practice that we often observe in our daily lives. This gap is more than just the topic of many commonplace jokes; it also has deep philosophical roots in the inherently androcentric Greco-Roman culture, which is the central focus of this work.
In a pendulum-like gesture, as the starting point for Movimentos emissores da existência [Existence-emitting Movements] Zamora adopts the classical image of a woman with a ceramic pot of water balanced atop her head. To carry on her head a load that weighs nearly as much as her own body, the woman needs not only strength and skill but also finesse. After all, quick movements do not combine with balance. The Western mindset unfortunately ended up associating this image with that of a useful and proud, but docile woman. A good example of this are the lessons in etiquette from not too long ago when girls were encouraged to carry objects on their heads, as a way of practicing an erect and modest posture. As a well-known phrase in Portuguese goes, concerning the stereotypically ideal woman: beautiful, reserved, and at home.
By inviting women to step on unset, still malleable play pots scattered on the floor, Zamora aims to intervene, both literally and metaphorically, on this stereotype of submission to which the woman has been relegated throughout the course of Western history. It is not, however, a gesture of destruction. When pressed under the women’s feet, with a combination of force, precision and finesse – the same skills required for the pots to remain balanced on top their heads – the utilitarian objects are transformed into beautiful and thought-provoking sculptural elements. It is impossible not to perceive this process of transmutation as a metaphor for day-to-day female life.
In our present time, amidst the evident failure of the civilizational project, Héctor Zamora offers tools for reflecting on various manners of coping with the challenges we face in the current Anthropocene era. Is it wise for us to continue – through the use of force and various forms of violence – to maintain a civilizational project that is increasingly seen to be exhausted? Or could it be that with finesse, sensitivity and precision, we can and should unite to transform our way of existing?. Helena Cavalheiro
Héctor Zamora
As circunstâncias
Torso nu, sexo exposto, semblante sério e olhar focado são características recorrentes da representação iconográfica do homem na cultura clássica ocidental. David, escultura realizada por Michelangelo no período renascentista, é um exemplo perfeito. Mas a sua relevância não é apenas formal. O herói bíblico é também símbolo de um projeto civilizatório, baseado no racionalismo e na virilidade, que nos orienta – e oprime – até os dias de hoje.
Em Platônicos, Héctor Zamora nos convida a refletir sobre este modelo, ao encomendar a um profissional da cantaria que transforme uma figura masculina em pedra em um conjunto de sólidos platônicos. A proposta de decompor a figura humana em poliedros elementares seria um gesto poético de “retorno às origens”. A ideia, no entanto, está fadada ao fracasso. Uma vez esculpida, a pedra se torna molecularmente instável, o que dificulta reesculpi-la com a precisão requerida para a criação das formas platônicas. Assim, com os cacos de pedra disformes que restam após o trabalho do canteiro, Zamora nos provoca a pensar sobre a distância entre teoria e prática com que estamos acostumados a conviver no dia a dia. Distância essa que, mais do que apenas fazer parte do anedotário popular, tem bases filosóficas bastante sólidas, ancoradas nessa mesma cultura greco-romana, fundamentalmente androcêntrica, ao redor da qual a obra orbita.
Num gesto pendular, Zamora adota, como ponto de partida para Movimentos emissores da existência, a imagem clássica de uma mulher carregando, sobre a cabeça, um jarro de cerâmica portando água. Para realizar a operação de carregar, sobre a cabeça, um peso por vezes quase equivalente à sua própria massa corporal, são necessárias, além de força e destreza, também alguma sutileza. Afinal, movimentos bruscos não combinam com equilíbrio. O imaginário ocidental, infelizmente, acabou associando essa imagem à de uma mulher utilitária e altiva, porém dócil. Um bom exemplo são as lições de etiqueta, de tempos nem tão remotos assim, em que meninas eram estimuladas a carregarem objetos sobre a cabeça, como forma de exercitarem uma postura ereta e comedida. Bela, recatada e do lar.
Ao convidar mulheres a pisarem sobre vasos de barro fresco espalhados sobre o chão, Zamora propõe interver, literal e metaforicamente, este estereótipo de submissão que foi relegado à mulher no curso da história ocidental. Não se trata, no entanto, de um gesto de destruição. Uma vez pressionados com os pés, numa combinação de força, precisão e sutileza – as mesmas habilidades, portanto, requeridas para que os vasos sejam mantidos sobre a cabeça – , os objetos utilitários são transformados em um elemento escultórico belo e provocador. Impossível não enxergar este processo de transmutação como uma metáfora do dia a dia feminino.
Em tempos em que convivemos com evidências do fracasso de um projeto civilizatório, Héctor Zamora nos oferece ferramentas para refletir sobre diferentes formas de enfrentarmos os desafios que se colocam neste nosso presente Antropocênico. Será mesmo o melhor caminho seguirmos buscando, na base da força e de muitos tipos de violência, manter um projeto civilizatório que, cada vez mais, mostra-se esgotado? Ou seria o caso de, com sutileza, sensibilidade e precisão, buscarmos transformar, coletivamente, a nossa forma de existir?. Helena Cavalheiro